30.12.05
Fim de 2005 : Fim da Depressão Colectiva ?
Mais um ano se passou, a correr, como os últimos, de há uns tempos para cá, quando teríamos preferido que eles decorressem mais suavemente, como se fosse possível reter esse fluido indomável, inapelavelmente inexorável, como sempre foi o tempo.
Desde que Santo Agostinho sobre ele engenhosamente discreteou, que permanece tema atraente, inquietante, tanto mais continuamente sedutor, quanto mais impotentes e preocupados com ele nos sentimos.
Ainda este ano, numa leitura que voltei a fazer da biografia de Albert Einstein, também aqui referida em Março p.p., fui dar com um livrinho que o Prof. António Brotas publicou, em 1988, na colecção «O Essencial», da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, sobre a Teoria da Relatividade.
Apesar do reduzido tamanho do formoso livrinho, António Brotas tratou o assunto com a seriedade que o caracteriza, como antigo ilustre Professor daquela velha e prestigiada Escola de Engenharia portuguesa, que é o IST – Instituto Superior Técnico – para muitos apenas designado «o Técnico», sem mais, como carinhosamente se lhe referem os que por lá passaram, com equações de Maxwell e tudo, a mostrar que, quando se domina uma matéria, se encontra sempre maneira de a explicar com elevação e profundidade, mesmo numa obrinha objectivamente de divulgação científica.
Lá aparece transcrito um pequeno excerto do livro XI das Confissões de Santo Agostinho ( 354-430 ), absolutamente estimulante, ainda hoje, para quem quer que se dê ao cuidado de reflectir sobre tão absorvente tema como é «o Tempo».
Vale a pena recuperar para aqui essas palavras sábias do Santo :
«Que é, pois, o tempo ? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente ? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito ? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas que o tempo ? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo ? Se ninguém me perguntar, eu sei ; se quiser explicar a quem me faz a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada passasse, não haveria tempo passado, se nada sobrevivesse, não haveria tempo futuro e, se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente.»
Acrescenta, logo a seguir a esta citação, o Prof. António Brotas : «este texto deveria ser reproduzido nos livros que hoje se escrevem sobre o Big Bang, para fazer ver aos leitores ( e às vezes aos autores ) que o problema da origem do Universo não é o do aparecimento de algo de material num espaço e num tempo pré-existentes, mas sim o do aparecimento conjunto do espaço, do tempo e da matéria.»
De facto, com o uso e abuso da especulação, ainda que sob roupagem científica, muitos autores se enredam em explicações complicadas, criando obscuridade onde deveria surgir clareza. Também aqui se pode dizer que não é professor quem quer, mas quem tem competência, gosto e vocação para ensinar.
Como muitos, decerto, concordarão, um bom investigador pode não dar um bom professor, não obstante o conhecimento, quiçá profundo, dos assuntos a leccionar que ele detenha. Daí que estas carreiras não devessem ser confundidas, como infelizmente acontece no nosso Sistema Educativo, com os nocivos resultados que se observam.
Neste particular, no campo do Ensino, passou mais um ano desanimador para a comunidade educativa em Portugal, constituída por governantes, professores, auxiliares da acção educativa, pais, famílias e alunos. Quando será que poderemos vir a sentir-nos reconciliados com o Sistema de Ensino ?
Desde que a moderna pedagogia, aliada à demagogia política mais despudorada, tomaram a direcção do processo das sucessivas reformas do Ensino, que este não cessa de decepcionar quem dele espera resultados na transmissão de conhecimento, ou melhor, no desenvolvimento de competências, como agora se diz, numa fraseologia supostamente grandiloquente, que tem tanto de presunção como de vacuidade conceptual, traduzindo-se, no fim, numa aprendizagem medíocre, por parte dos estudantes, num trabalho de baixa eficácia, que já nenhum circunlóquio consegue iludir.
Se transitarmos para os restantes sectores da vida nacional, a percepção não será substancialmente diferente, com já aqui por diversas vezes tenho referido, tantas, que começa a ser doloroso e deprimente a mera enunciação dos seus males.
A mania de transformar os problemas em debates ideológicos só tem agravado a situação e adiado a sua desejada resolução. Se não compreendermos isto, por muitos mais anos prolongaremos a nossa agonia e atrasar-nos-emos ainda mais em relação aos nossos parceiros europeus, arriscando-nos a cair ( e lá permanecer ), na cauda dos 25 da União Europeia, depois de a termos atingido, na fase dos 15.
Com estas decepcionantes realizações, não há amor-próprio, que não temos, que nos salve, sobretudo, quando não se vê como lograremos sair deste círculo vicioso em que entrámos no último decénio e meio.
A meditação histórica costuma ajudar na luta contra o abatimento moral e cívico dos cidadãos. Mas, sem uma alteração dos factos, sem alcançar metas concretas, resultados palpáveis, na Economia, na Justiça, no Ensino, na Saúde, na Agricultura, nas Pescas, etc., etc., não nos libertaremos tão cedo desta incapacitante depressão colectiva.
Todavia, portugueses, não desesperemos ; procuremos antes contribuir com o nosso esforço e com a nossa vontade para a regeneração nacional que desgraçadamente tarda.
Acreditemos que melhores dias virão. Porém, não esqueçamos quem nos tem trazido, nestes últimos lustros, a tão desanimadora situação.
Sem julgamento, não se faz justiça.
AV_Lisboa, 29 de Dezembro de 2005
21.12.05
O Debate Soares - Cavaco
A Soares, quase sempre arrogante e presunçoso, chegando ao ridículo de se intitular também Professor e Universitário, só lhe terá faltado alegar os 23 Doutoramentos honoríficos que possui, sem a maçada de ter lido bibliografias recomendadas e demais dossiers, coisa inquestionavelmente invulgar, terá de reconhecer-se.
Cavaco esteve muito timorato, quase sem contestar as grosserias de Soares. Este, a maior parte do tempo, quando falava com os jornalistas, referindo-se a Cavaco, usava sempre um deselegante pronome : ele, ele diz, ele pensa, etc., etc. Para quem tem fama de animal político, exímio no comportamento de salão, experimentado em banquetes e recepções, é, no mínimo, um tanto decepcionante.
Contudo, para todos aqueles que têm algumas exigências culturais e éticas, ter-lhes-á custado, certamente, ver Cavaco tão amedrontado, nervoso, com o discurso pouco explícito, algo até atabalhoado, para um Professor Universitário legítimo, verdadeiro. Foi evidente o seu nervosismo e a inacapacidade de reduzir Soares à sua vacuidade e ao seu exacerbado narcisismo.
Mas ninguém pode dar aquilo que não tem e, como sabemos, Cavaco não nasceu para debates. Por isso, para Cavaco, não ser esmagado nestes confrontos equivale a uma quase vitória prática. Inversamente, para Soares, não conseguir esmagar adversários políticos, em debates, Cavaco, sobretudo, significa perder.
E, até aqui, nada de novo. Afinal, que vamos nós escolher : actores, declamadores, oradores, retóricos de tribuna dourada, aves canoras das banalidades republicanas, à semelhança do que temos tido nos últimos 20 anos ?
Que valorizamos mais : a honestidade, a competência, o conhecimento dos assuntos, a firmeza de carácter ou, pelo contrário, o discurso fluente, aparentemente ornado, florido, mas vazio e inócuo, sem coerência, nem consequência ?
Das respostas a esta pergunta depende o desfecho da presente Campanha Eleitoral.
Veja-se a que perfil pertence cada um dos actuais candidatos e faça-se então a escolha conveniente, ainda que não a ideal.
E com isto termino, por ora, como reacção a quente.
AV_Lisboa, 20 de Dezembro de 2005
7.12.05
Relembrando Eça de Queiroz
« O país perdeu a inteligência e a consciência moral.
Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos.
A prática da vida tem por única direcção a conveniência.
Não há princípio que não seja desmentido.
Não há instituição que não seja escarnecida.
Ninguém se respeita.
Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos.
Ninguém crê na honestidade dos homens públicos.
Alguns agiotas, felizes, exploram.
A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia.
O povo está na miséria.
Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente.
O Estado é considerado, na sua acção fiscal, como um ladrão e tratado como um inimigo.
A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências.
Diz-se por toda a parte : o país está perdido ! »
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Texto de Eça de Queiroz, escrito em 1871, inserto no número 1 d'As Farpas.
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Comentário ao correr da pena :
Muitas vezes, ao longo dos últimos anos, tenho lido e relido este pequeno texto do Eça, de uma pungência e de uma mestria exemplares, tanto mais, se atentarmos no ano em que foi publicado, 1871, tinha ele somente 26 anos incompletos, irrequietos de imaginação e de fulgor.
Há quem acuse o Eça de ter sido extremamente crítico numa fase da sua vida, a da sua mocidade, quando pertencia ao Cenáculo de Antero, Oliveira Martins, Batalha Reis e outros jovens intelectuais, avant la lettre, quando, vindos de Coimbra (Antero e Eça), queriam fustigar a retrógrada sociedade portuguesa da época, para fazê-la sair da letargia em que se achava, já então a perder o comboio da industrialização e da modernidade europeias.
Datam desse período muitos textos brilhantes de inventividade, de oportunidade, de crítica acerba, plasmados num português excelso, de grande finura, de apurada sensibilidade, de gosto selecto, que ainda hoje não encontrou igual, apesar do mimetismo que tem gerado.
De uma forma quase imperceptível, ficamos como que enfeitiçados com o seu estilo elegante, fluente, de um mestre acabado da Língua, muito cedo afirmado nessa reputação.
Alguns maldosos ou invejosos acusavam-no de francesismo, pelas suas preferências literárias, absolutamente naturais, se nos lembrarmos que a França e, em particular, Paris eram, então, o centro do Mundo, pelo menos artístico.
Apesar disso, ainda ele criticou o excessivo culto e a exagerada influência do francesismo na sociedade portuguesa, não só artística, como nos seus demais sectores. Mais de 100 anos passados sobre a sua morte, ocorrida a 16 de Agosto de 1900, em Paris, a ele continuamente voltamos encontrando sempre, nos seus textos, um encanto nunca esgotado, uma novidade e uma frescura surpreendentemente renovadas.
Conheço pessoas, grandes apreciadoras de Eça, que, não sendo literatas, nem com formação em Letras, confessam nunca adormecer, sem ler uma página, ao menos, da sua vasta prosa encantatória.
A crónica acima transcrita circula pelos circuitos do correio electrónico com frequência e muito justificadamente, tal é a sua contundência crítica e de tal forma se lhe reconhece oportunidade.
Pode mesmo perguntar-se :
Em que é que este famoso escrito do então jovem Eça perdeu actualidade ? Onde e como ? A diferença hoje encontrada é radical ou reside apenas na gradação do mal observado, no grau de apodrecimento da conjuntura vivida ?
Quem é/são, agora, o(s) responsável(eis) da situação verberada :
a Monarquia, a Igreja, a Inquisição, o Clericalismo, a República, o Jacobinismo, o anti-Clericalismo, o Laicismo, a Ditadura, o Estado Novo, o Salazar, o Salazarismo, o Caetano, o Salazar-Caetanismo, a Guerra de África, o isolacionismo diplomático, a Revolução Abrilina, o internacionalismo diplomático, o Gonçalvismo, o Comunismo, o Esquerdismo, o 25 de Novembro, a Recuperação Capitalista, o Eanismo, o Soarismo no Governo, o Cavaquismo, a CEE, o Soarismo na Presidência, o Guterrismo, o Sampaísmo, o Barrosismo, o excesso de integração europeia, a União Europeia, a falta de Fundos da União, o excesso de Fundos malbaratados, o Santanismo, o Socratismo, o analfabetismo, a iliteracia, o Ensino Oficial, o Ensino Privado, as Universidades Públicas e as Privadas, o baixo número de Diplomados com Cursos Superiores, o excesso de Licenciados mal formados, o excesso de beneficiários da Segurança Social, o elevado número de idosos, o baixo número de jovens, a fraca taxa de natalidade, a subida da esperança média de vida, a fuga fiscal, o endividamento particular, o chico-espertismo do Povo, a falta de categoria, técnica, intelectual e moral, das Elites, o Despesismo do Estado, o Défice Orçamental do dito, etc., etc., etc.
A quê ou a quem mais poderemos assacar culpas, para dormirmos descansados, sempre descrentes e maldizentes, mas sempre, de certo modo, coniventes com todos estes enunciados males, sem pretensão de que os haja aqui arrolado a todos ?
Sem iludir a responsabilidade directa, indeclinável e imprescritível, de quem, entretanto, exerceu e/ou continua a exercer os cargos de mais elevada influência na condução do País, com ou sem legitimidade democrática, quero crer que um dia saberemos responder a estas singelas perguntas.
Quando esse dia chegar, se ele chegar, acreditemos que sim, enquanto se faz mister, teremos – então – iniciado a nossa recuperação, como pessoas, como País e como Povo.
Até lá, que cada um cumpra o seu dever, contribuindo para a ingente tarefa da Regeneração Nacional, outra vez, na nossa História, tornada absolutamente necessária.
AV_Lisboa, 07 de Dezembro de 2005, véspera de Feriado religioso em Portugal, dia da Imaculada Conceição de Maria, condição ou situação extraordinária, que, para os crentes, católicos, configura um milagre erigido em Dogma pelo Papa Pio IX, com a Bula Ineffabilis Deus, de 08 de Dezembro de 1854.
Maria, mãe de Jesus, figura particularmente querida na devoção popular portuguesa, desde quase a fundação do Reino, foi declarada Nossa Senhora da Conceição, Padroeira de Portugal, pelo Rei D. João IV, em 1646, ainda no rescaldo da luta vitoriosa dos Portugueses pela Restauração da Independência da Nação, iniciada em Lisboa, no Terreiro do Paço, com a revolução do 1º de Dezembro do ano de 1640 e terminada com a assinatura do Tratado de Paz com a Espanha em 1668.
1.12.05
Memória do 1º de Dezembro de 1640
Bem sei que hoje alguns inconscientes ou pérfidos vendilhões desvalorizam esse gesto determinado. Mas quero crer que na memória íntima e profunda do povo português vive ainda esse orgulho de nação valente, firmado, logo em 1128, nos campos de S. Mamede, em Guimarães, pelo moço infante, Afonso Henriques, contra sua mãe D. Teresa, perigosamente amancebada com o conde galego, Fernão Peres de Trava ; reafirmado em 1385, em Aljubarrota, pela coragem e argúcia de D. Nuno Álvares Pereira e recuperado depois, em Lisboa, no Terreiro do Paço, nas Beiras e nos campos do Alentejo, entre 1640 e 1668, nos recontros vitoriosos de Montijo (Espanha), 1644, Linhas de Elvas, 1659, Ameixial, 1663, Castelo Rodrigo, 1664 e na batalha derradeira, decisiva, de Montes Claros, em 1665.
Só após estas duras batalhas, sempre vitoriosas para as armas nacionais, os espanhóis se resignaram, assinando o Tratado de Paz, em Lisboa, em 1668, reconhecendo a Restauração da Independência de Portugal, na figura do Rei D.João IV, o ex-Duque de Bragança, que aderira ao plano dos conspiradores patriotas.
Houve que lançar alianças, buscar apoios fora da Península, reestruturar o Exército, reorganizar a Administração do Reino, reconquistar as possessões no Ultramar, no Império, que, descurado pelo espanhóis, havia caído, em grande parte, nas mãos de potências rivais, principalmente da Holanda, que sempre nos cobiçara territórios, na América, na África e na Ásia.
Do Brasil, partiu, então, uma preciosa ajuda militar, de colonos portugueses e já mesmo brasileiros, posto que nados e criados no Brasil, mas, irmanados sob a mesma bandeira, souberam lutar para expulsar o inimigo, de Luanda e de outras praças, para aí, de novo, implantarem a soberania portuguesa, outra vez triunfante.
Deve ter sido uma tarefa ingente que nos cumpre hoje recordar e respeitar, para não menosprezarmos aquilo que, então, tanto sangue custou a reerguer.
Em cada época, há uma forma própria, adequada, de defender a nossa soberania e, se os métodos podem mudar, o propósito, esse, deverá ser sempre o mesmo, se quisermos ser dignos do carácter valoroso dos nossos antepassados.
Honra, portanto, aos conjurados de 1640, à cabeça dos quais se achavanm homens de fibra como : João Pinto Ribeiro, D. Antão e D. Luís de Almada, D. Miguel de Almeida e D. Telo de Meneses, alguns dos 40 bravos patriotas, que nesse 1º de Dezembro de 1640 desencaderam a revolta que nos devolveria a dignidade da soberania perdida 60 anos antes, com a infeliz surtida de D. Sebastião nas areias ardentes de Alcácer-Quibir.
Nunca a memória destes feitos se apague das nossas cabeças e dos nossos corações.
A alguns nossos concidadãos poderá parecer excessiva ou deslocada esta linguagem, tão desabituados já estão de a ouvir, alguns deles, outros nunca a terão sequer ouvido. Mas a sua razão e a sua verdade, essas, não morreram ainda e esperemos que não morram nunca, por mais aprofundamentos que a nossa actual integração política na União Europeia venha a sofrer.
De resto, quem nos poderá garantir que o projecto de União Europeia anulará as actuais nacionalidades ? Quem tão-pouco nos poderá assegurar que a União Europeia será sequer um projecto realizável ?
AV_Lisboa, 01 de Dezembro de 2005, dia Feriado em Portugal, em memória da Restauração da Independência, neste mesmo dia de Dezembro, no ano de 1640.
Nos 70 anos da Morte de Fernando Pessoa
Admiti, então, que um ano decorrido, em 30 de Novembro de 2005, a circunstância de se comemorarem os 70 anos da sua morte, número redondo, apelativo, a efeméride devesse ser mais celebrada, quer pela Comunicação Social, quer pelas instituições culturais, sempre mais acicatadas pelas datas caídas em dezenas ou centúrias evocativas.
E, de facto, assim aconteceu. Hoje, durante todo o dia, na rádio e na TV, se falou de Fernando Pessoa, da sua obra e da sua genialidade. Realizaram-se recitais de Poesia, espectáculos vários alusivos ao poeta e a Casa Museu Fernando Pessoa programou para a noite uma exibição de multi-média sobre a sua vida e a sua obra.
Terminam também, neste ano de 2005, os direitos especiais de edição da sua obra, fazendo prever quebra significativa nos preços dos livros, que diga-se, estão caros, em especial os da editora Assírio e Alvim, que perderá aqui parte do seu presente filão editorial.
Com isso, aumentará certamente o número de leitores, estimulados pela imensa popularidade actual de Pessoa, o que contrasta com a quase obscuridade da sua passagem pelo Planeta, por Portugal e por Lisboa, em particular, que olimpicamente o ignoraram em vida.
Como é sabido, Pessoa arrastou uma existência exterior monótona, banal, rotineira, pela capital, ali pela zona da baixa pombalina, seu habitat natural, quase exclusivo, num limitado circuito de poucos quilómetros, todos os dias percorrido, entre as ocupações de empregado de escritório ocasional, de horário ligeiro, liberal, e a frequência de algumas raras tertúlias de café.
A Brasileira do Chiado e o Martinho da Arcada, sobretudo, eram os cafés da sua predilecção, onde os seus escassos amigos o encontravam para juntos trocarem opiniões e confessarem as suas preferências literárias e artísticas.
Quase se poderia reconstituir o seu deambular quotidiano lisboeta, tão regular e previsível se tornara a sua vida exterior. A outra, a do artista, a do poeta e pensador, essa, passava-se noutro plano, interior, recolhido, intensamente vivido, pleno de imaginação e produção, até altas horas da noite, acompanhadas, segundo se diz, a muitos goles de álcool, aguardente, parece, que lhe haveriam de minar as entranhas.
Nessa tumultuosas noites, escrevia sem parar, por vezes sem disciplina, desenvolvendo, em simultâneo, vários projectos, alguns depois lançados no mítico baú, em que posteriores literatos haveriam de exaurir a sua erudição pessoana, ganhando foros de doutores especialistas nas formidáveis elucubrações do poeta-pensador português, por excelência.
Com enorme ironia se comprova hoje a sua uiversalidade, quando há setenta anos morria quase incógnito, anónimo no mundo, conhecido e estimado apenas de um pequeno, mas selecto, grupo de artistas e literatos, jovens, na sua maioria, também pouco socialmente visíveis, para usar uma expressão de sabor moderno.
Continuar-se-á a falar dele por muitos e bons anos, a descobrir facetas ainda ocultas ou pouco exploradas da sua obra e analogamente da sua personalidade, tão fecunda quanto misteriosa.
É este o destino dos Génios, cujo espírito fecundo ultrapassa épocas e gerações, gerando sempre novas perspectivas, enriquecedoras interpretações, numa exegese quase bíblica, pela minúcia da pesquisa, multiplicada pela devoção incansável dos seus admiradores.
De que formas poderemos hoje honrar condignamente o seu nome, sem, contudo, saturar o leitor comum que desconfia de tanta oficial e oficiosa dedicação ?
Uma delas seria, certamente, promovendo o estudo, o culto e a difusão da Língua Portuguesa, a sua Pátria, como ele lhe chamou, a qual, para Fernando Pessoa, constituia autêntico objecto de veneração. Num dos seus escritos, chega a dizer que sofria como uma chaga no corpo qualquer atrocidade ou falta cometida às regras do bem falar e escrever a sua /nossa (mal) amada Língua Portuguesa.
Como sofreria actualmente este nobre espírito, ao assistir a verdadeiras barbaridades que contra ela hoje se cometem, até por quem estaria obrigado, por lei, por função e por missão, a defendê-la, a cultivá-la e a enobrecê-la.
A começar nos Jardins de Infância, na Escola Primária, todos os graus de Ensino deveriam tomar a peito esta tarefa de dar a conhecer aos alunos um idioma escorreito, nobre, dúctil e apto para as mais diversas utilizações. Logo em seguida, haveria que cuidar da preparação dos jornalistas-locutores da Rádio e da TV, sobretudo desta, pela sua esmagadora penetração social e imensa «força normativa», criando padrões comunicativos, quantas vezes errados ou malsãos.
Os responsáveis destes órgãos, se tivessem consciência da sua obrigação, neste domínio, há muito que teriam formado estruturas internas em que se criasse o hábito de zelar pela saúde da Língua, afinal, seu instrumento principal de trabalho, mais importante que os computadores e a panóplia de meios que a electrónica e a informática puseram à sua discricionária disposição, infelizmente, tanta vez malbaratados, por falsos critérios ou mesmo por ausência deles, guiados num vezo de puro mimetismo, por preguiça mental ou crassa incultura generalizada.
Com que afronta sofreria o nosso fino poeta-pensador, Fernando Pessoa, toda esta hodierna enxurrada de incúria linguística, poderemos imaginar por algumas opiniões que nos deixou em tantas páginas brilhantes de pensamento original.
Fiquemo-nos, por ora, com esta sua frase elucidativa :
« Quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma»
O amor, a reverência, com que Pessoa sempre tratou a Língua Portuguesa, ele que, com toda a naturalidade, pela educação juvenil e de adolescente que recebeu, em Durban, na África do Sul, onde fez toda a instrução primária e secundária, com notável distinção, poderia ter sido inglês, tendo escolhido ser português, deveriam incitar-nos a nós, falantes actuais dela, ao seu uso mais esmerado, ao seu culto mais elevado.
Deveríamos mesmo exigir de todos os órgãos de comunicação o escrupuloso respeito da sua natureza de símbolo maior da nossa identidade cultural, inquestionavelmente singular, original, que pode e deve integrar, sem se descaracterizar, contribuições próprias de outros povos, de base cultural diferente, mas que, por efeito da História, connosco se miscigenaram, enriquecendo uma Cultura que poderíamos, sem pretensão hegemónica, nem equivocados propósitos, apelidar de Lusíada, porque ficou, tal como a vida de Camões, pelo Mundo em pedaços repartida.
AV_Lisboa, 30 de Novembro de 2005